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terça-feira, 20 de junho de 2006

Estórias do Futebol

O futebol, todos o sabemos, é um desporto pródigo em episódios insólitos e muitas vezes verdadeiramente caricatos.
A situação agora em descrição aconteceu já há bastantes anos num desafio decisivo do Campeonato Distrital de Aveiro e ilustra exemplarmente o insólito e o caricato que se podem instalar inopinadamente numa simples partida de futebol.
Disputava-se a última jornada de uma competição renhidamente disputada e que se adivinhava de excitante incerteza até ao último momento, especialmente no que respeitava à subida à 3ª Divisão Nacional e também à descida à 2ª Divisão Distrital.
Pelos acasos do sorteio, cabia ao 1º classificado visitar nessa derradeira jornada o recinto de um dos últimos, em qualquer caso ambos verdadeiramente necessitados de vencer para não dependerem dos resultados de terceiros para atingirem os seus objectivos.
A agravar o dramatismo dos noventa minutos finais, tratava-se de clubes de localidades vizinhas e com um longo historial de rivalidades antigas e nem sempre resolvidas pelos meios mais pacíficos. Um pequeno barril de pólvora, em suma!
Grande enchente, que o acanhado recinto mal suportava fora da vedação do pelado, apoiantes das equipas equilibrados em número, entusiasmo transbordante dos apaniguados do comandante, maior contenção e expectativa por parte dos da casa, Àquele nível, era o jogo do ano.
Partida a decorrer, golos, emoção, o espectáculo era vibrante, correspondia.
Dentro das quatro linhas, luta intensa, de dar tudo por tudo. De chispar.
Do lado de fora, nervosismo, vivia-se cada lance como se fosse decisivo. E sofria-se.
Aos oitenta e nove minutos de jogo havia uma igualdade a um no marcador, resultado que, desconhecendo-se a evolução do placard nos restantes jogos, não tranquilizava nem as equipas nem os adeptos.
A tensão era grande dentro e fora do rectângulo quando acontece o impensável: no último minuto, na marcação de um canto a favor do líder, com quase todos os jogadores dentro da grande área, a bola rematada por um atacante é impedida de entrar pela mão de um defensor contrário situado na linha de golo... e de repente instala-se o fim do mundo naquele minúsculo ponto do planeta! Golo?! Mão voluntária?! Casual?! O árbitro, sabe-se lá se convicto ou obstruído na visão, nada assinalou e em escassos segundos tudo se vira ao contrário: enquanto os visitantes rodeavam freneticamente o juíz da partida junta à marca da grande penalidade festejando o hipotético golo ou reclamando o sancionamento da falta máxima, um defesa da casa despachava no mesmo instante a bola com um pontapé comprido para o meio-campo adversário. O esférico bateu no solo, sobrevoou o atarantado guarda-redes e, impelido finalmente por um atacante visitado surgido em grande velocidade nem se sabe bem donde, entrou na baliza dos que protestavam na área oposta... e era agora a confusão total...
Num instante, a situação sofrera uma evolução completamente imprevisível e o caso era agora verdadeiramente insólito e caricato: vinte e dois jogadores reclamavam o melhor para as suas cores, quase três mil espectadores dividiam-se agitadamente entre a alegria dos festejos e a ira dos protestos, dez guardas republicanos atarefavam-se a tentar impedir a invasão de campo e o árbitro, coitado, passava as passas do Algarve para conseguir chegar às cabines de pé e incólume...
O jogo não chegou a ouvir os apitos finais.
Naquele tempo não havia telemóveis e demorou a chegar notícia dos outros campos. Tempo para discussões, bastonadas e narizes partidos...
Muitos minutos depois, que as telecomunicações não eram o que são hoje, quando os da casa há muito clamavam vitória, estrelejaram no ar os foguetes dos visitantes.
Salvava-se o fim de tarde dos taberneiros das redondezas.
Tudo terminava em festa.
Narciso Cruz

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